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O psicólogo vai ao bar...

Atualizado: 21 de dez. de 2020



Nota: Essa crônica trata sobre acontecimentos fictícios. Ainda assim, é quase certo que alguns psicólogos se identificarão com ela.


Trinta horas semanais de atendimentos no seu consultório. Para cada uma dessas horas, outros tantos minutos para estudo e planejamento de cada caso – sem falar na organização dos documentos, guias, agenda, lista de pacientes, sessões desmarcadas e encaixes de última hora. Cinco a seis dias por semana nessa rotina, dividindo as atenções com família (que reclama da sua ausência), amigos (que reclamam da sua ausência) e pós-graduação (que consome o tempo livre para a família e os amigos, mas o orientador ainda reclama da sua ausência). Contas a pagar, oficina que atrasou a revisão do carro, passeio com o cachorro no parque, limpeza do banheiro de casa, lavar e passar a roupa acumulada da semana anterior, cozinhar um jantar minimamente palatável, aulas de violão toda semana e academia diariamente às seis e quinze da manhã. Uma rotina onde qualquer imprevisto tem recepção tão calorosa quanto aquela dispensada pelos alemães aos norte-americanos que desembarcaram nas praias da Normandia em 1944.


Restava-lhe a noite de sábado, sagrada e imaculadamente reservada em sua agenda para o seu próprio deleite. Esse momento da semana ganha uma pompa ritualística, onde o terapeuta deixa momentaneamente de lado as demandas atendidas durante a longa semana de trabalho e veste roupagem de um indivíduo comum, quase frugal, como qualquer pessoa numa noite de sábado rumo ao seu boteco preferido. Uma caipirinha bem preparada ou um chope gelado fazendo companhia a uma boa música. Seu objetivo agora é o de extrair boas conversas dos amigos, com os quais possa dar risadas descontraídas e relaxar entre um petisco e outro. Tudo estava indo muito bem até chegar o primo do cunhado da colega da irmã. Em outras palavras, aquele estranho que aparece quando menos se espera.


Depois de alguns minutos de conversa amena, o psicólogo, já desarmado pela tropa etílica que rendeu suas defesas psíquicas, esqueceu de se apresentar como “agrônomo” ou “professor de matemática” (truque muito útil que psicólogos experientes utilizam para evitar a curiosidade superficial do interlocutor sobre sua profissão). Ele cometeu o erro clássico: se apresentou com um “Sou psicólogo, muito prazer!


Em fração de segundos a expressão descontraída do primo do cunhado da colega da irmã, que àquela altura já se sentia íntimo como um primo de segundo grau, passou a exibir traços de curiosidade com toques de perplexidade e um leve tempero de terror. Seguiu-se um interminável momento de silêncio constrangedor, quebrado com a já esperada pergunta: “Uau! Que interessante… você consegue adivinhar no que eu estou pensando agora?”. Se agarrando a toda polidez que restou após o ataque dessa pergunta à sua integridade emocional, o psicólogo tentou ser breve – e ainda assim informativo – respondendo que ele era treinado a observar pessoas e utilizar isso somente em atendimentos em ambiente clínico. Complementou que não se atreveria a fazer isso com o “primo”, pois estava ali de folga para relaxar e se entreter. Análises só se fariam dentro do seu consultório. E sem bola de cristal, nem adivinhações. Considerou o assunto por encerrado e pediu mais um pint de chope.


Não contente e parecendo ainda mais interessado, o “primo” se atreveu a fazer nova pergunta: “Ah… mas agora você está analisando o que eu disse, não é?”. Breve suspiro e um gole no copo de chope gelado recém entregue. O terapeuta repousou o copo sobre a bolacha colorida e fitou o colarinho como se desejasse se esconder ali mesmo, naquela fina camada de espuma. Respirando fundo e lutando para conter sua inquietude, disse: “Não, amigo. Não o estou te analisando. Eu faço isso durante a semana inteira, com vinte e cinco pessoas diferentes. Dependendo da semana, umas trinta. Algumas delas vejo duas vezes por semana. Analisar alguém é uma coisa complexa, cansativa e exige muito de mim. Normalmente eu chamo isso de trabalho… Agora estou aqui apenas para tomar meu chopinho e comer uma porção de batatas!”. Nesse ponto o psicólogo mal conseguia controlar seu sarcasmo e previu que a situação poderia se tornar ainda mais incômoda, como num recorrente déjà vu…


Passados dez minutos, o “primo” sentiu-se mais relaxado sabendo que não era alvo de escrutínio daquele cara misterioso do outro lado da mesa, que tudo sabia e nada falava. Sem perceber a infâmia que estava prestes a cometer, apontou para uma mulher desacompanhada sentada no balcão do bar. Perguntou ao psicólogo se ele saberia aconselha-lo na melhor forma de abordar aquela moça bela e solitária (justo aquela que parecia bastante entediada), maximizando as chances das fantasias do “primo” se tornarem realidade naquela mesma noite. Olhando para o seu copo de chope recém vertido, o psicólogo começa a remoer em silêncio: “Que coisa! Por que foi mesmo que eu saí de casa hoje? Ah sim! Sábado, é verdade. Como eu queria agora que hoje fosse domingo. Putz, parece que o cara ainda está esperando uma resposta minha. Não adianta enrolar. Acho que terei que tomar uma atitude!”.


Ele olha para o “primo” e diz: “Preste bem a atenção! Vou te mostrar como se faz!”. Então aguardou até que a moça se virasse em sua direção e então lançou um olhar certeiro. A moça correspondeu com um sorriso. O psicólogo levantou-se da cadeira, se aproximou e disse algumas palavras no seu ouvido, piscando rapidamente para o “primo” e o deixando atônito com o desenrolar da cena. Ela pegou sua bolsa e ele lhe ofereceu o braço para acompanha-la em direção à porta. Nova piscadela em direção ao “primo” e um sorriso sincero de vitória.


Chegando ao lado de fora do estabelecimento, o psicólogo chama dois táxis e se despede da mulher desconhecida, intensamente grato por tê-lo salvo de uma noite entediante.



Post Scriptum: ao revisar esse texto, em fins de 2019, percebo que ele reflete menos a realidade contextual que vivemos passados menos de cinco anos desde sua escrita original e corre o risco de se tornar bastante datado nos anos que se seguirão. Esse autor também mudou sensivelmente com o passar do tempo e se identifica menos com essa narrativa do que quando ela foi concebida, em início de carreira. Dito isso, decidi manter esse texto publicado como um tributo ao escritor que já não sou, mas que foi uma versão importante na evolução desse que hoje escreve e daquele futuro que ainda se constituirá.



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