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Quem se define... se limita?

Atualizado: 21 de jun. de 2021


8 de janeiro de 2021

por Rodrigo Henrique Puppi


Já faz algum tempo que eu lia com alguma frequência a frase “quem se define se limita” (sic.) em perfis de redes sociais diversos. Num primeiro momento eu confesso que achei essa afirmativa bastante preguiçosa. Minha impressão foi que a pessoa sequer fez o esforço de reflexão sobre si mesma ou lhe faltava autoconhecimento, se defendendo desse trabalho com o argumento de que aqueles que se definem colocam uma limitação num potencial ilimitado prestes a ser eclodido. Por outro lado, a ciência nos conta que de qualquer forma temos limitações biológicas e sociais sobre quem somos, fazendo com que o ato de nos definir precisamente seja demonstração de puro autoconhecimento, mas não de uma limitação adicional. Mas... será que os influencers e seus seguidores tinham razão e existe algum sentido de limitação em definições de si mesmo?

Não é de hoje que a psicologia faz esforços sérios para descrever, determinar e prever como as pessoas se comportam. No final do Século XIX um movimento de estudiosos buscava aplicações práticas para a psicologia científica, que ainda estava muito atrelada a laboratórios experimentais e discussões teóricas. Eles consolidaram esforços e criaram protocolos de avaliação em grande escala para testar pessoas em diferentes condições. Foram milhares de imigrantes que vinham da Europa buscando oportunidades nos EUA, recrutas sendo selecionados para as duas Grandes Guerras, grupos minoritários, grupos de diferentes etnias. Historicamente o contexto favorecia interpretações de que o ser humano teria estruturas mentais e de personalidade fixas, determinadas principalmente pela genética e hereditariedade. Essa visão estrutural da psicologia facilitava o trabalho de “classificação” de pessoas a partir de testes padronizados, como os então inovadores testes de inteligência que determinavam o QI com facilidade ou os testes de personalidade, que descreviam com suposta precisão os comportamentos de cada indivíduo baseado em como respondiam questionários objetivos ou testes interpretativos. Infelizmente esses primeiros conhecimentos científicos foram utilizados politicamente para justificar práticas segregacionistas e discriminatórias. Deixando mais claro o problema dessa perspectiva: os resultados desses testes determinavam o futuro de indivíduos ou famílias inteiras a partir de um conjunto de respostas em folhas de papel, sem maiores chances de avaliar profundamente o potencial de cada pessoa. Muitos italianos que chegaram ao porto de Nova Iorque foram testados e avaliados com inteligência abaixo da média não pelo motivo de terem dificuldades cognitivas, mas por não conseguirem compreender a língua inglesa padronizada nas questões que os entrevistadores lhes perguntavam. Óbvio que não conseguiriam acertar as respostas pedidas para ter um bom desempenho nos testes. Era o suficiente para serem designados para subempregos e moradias em condições inferiores às dos imigrantes anglo-saxões. Aquelas foram práticas duvidosas e hoje em dia seriam eticamente condenadas antes mesmo de serem postas em exercício. Os comitês de ética em pesquisa e prática de psicologia só surgiriam décadas mais tarde. Há muito mais a se comentar sobre as aprendizagens que a psicologia acumulou a partir de erros metodológicos ou de práticas discutíveis que nunca serão repetidas, mas deixemos isso para outro artigo. Aqui vamos resumir que as práticas de se categorizar pessoas em “caixinhas quadradinhas e determinadas” permanecem influentes na cultura popular ainda nesse Século XXI.

Avançamos alguns anos e descobrimos que a personalidade das pessoas muda (“grande novidade!”, você leitor pode estar pensando...). De fato, o rigor do método científico exige tempo para checar qualquer tipo de resposta, mas é o que certifica a solidez desse tipo de conhecimento. Um dos estudos mais longos sobre personalidade mostrou dados muito interessantes quando os mesmos participantes foram entrevistados aos 14 e mais tarde aos 77 anos de idade. Os dados de 1208 adolescentes foram coletados em 1950 e 174 desses concordaram em participar de uma nova rodada de testes em 2012. Foram traçadas seis características de personalidade: autoconfiança, perseverança, estabilidade de humor, consciência, originalidade e desejo de se destacar. Os achados foram de que a personalidade daqueles jovens não se manteve estável ao longo dos anos: os resultados de testes de uma mesma pessoa na sua juventude e quando mais velha eram diferentes quando comparados! Soma-se a outros estudos que mostram que há baixa estabilidade nos traços de personalidade de uma pessoa, com as mudanças mais significativas ocorrendo na adolescência e começo da idade adulta. A conclusão foi de que a personalidade de uma pessoa muda gradualmente e significativamente ao longo de sua vida.

Hoje em dia vemos muitas formas de se descobrir “quem somos nós”. O exemplo mais seguro são os instrumentos formais e cientificamente validados que psicólogos aplicam, com a condução de um processo de avaliação psicológica combinado a entrevistas e outras formas de obtenção de dados – um método MUITO mais avançado e preciso do que os exemplos anedóticos que contei alguns parágrafos acima. O processo de avaliação psicológica atual leva em consideração que os resultados podem ser influenciados por condições no momento da testagem (ex. a pessoa pode estar sonolenta, cansada, com dores de cabeça, suscetível a se distrair, com pressa para terminar logo o teste...), o que significa que nenhum resultado é visto como conclusivo em si. É como uma fotografia de como a pessoa se encontra naquele momento. Essa fotografia mostra só um ângulo naquele instante, mas não é um filme de toda a vida da pessoa. Por mais que essas definições específicas possam trazer boas conclusões, considera-se que a pessoa pode refazer o mesmo teste no futuro e ter resultados diferentes. Existe um espaço para se desenvolver habilidades ou comportamentos necessários para seguir no caminho desejado para a sua vida, justamente porque sabe-se que as pessoas podem mudar muito quando os esforços são bem direcionados.

Fora dos consultórios de psicólogos, a necessidade e a curiosidade humanas estimulam um mercado que não atende aos mesmos critérios técnicos: são bastante variados os testes de personalidade de internet (esses até viraram “piada interna” nas aulas de avaliação psicológica em faculdades de psicologia), além de outros instrumentos utilizados por profissionais de fora da psicologia que não mantém a mesma validade científica, como o DiSC ou os Indicadores de Tipologia Myers-Briggs. Seguimos caminhando com a curiosidade para ainda mais longe da ciência quando falamos em mapas astrais, correntes esotéricas/pseudocientíficas ou de doutrinas que delimitam quem devemos ser, às vezes "a qualquer custo". Aqui mora um risco que já conhecemos naquele passado da psicologia: o de definir quem se é sem olhar para a possibilidade de mudança. A crença numa “essência imutável”, por exemplo. É uma pegadinha que se vê praticada em organizações quando um gestor, diante da necessidade de contratar uma pessoa para determinada função, observa os gráficos bem apresentados que o DiSC (ou DISCUS) gera e, baseado unicamente nisso, determina rapidamente quem será contratado ou recusado para a vaga. Não muito diferente do que os inspetores novaiorquinos faziam há mais de cem anos, se colocarmos em perspectiva. Temos ainda a clássica frase: “Ela é combativa assim porque é do signo de Áries!”; “Ele é de escorpião. Pode esperar, porque cedo ou tarde ele vai se vingar pelo o que você fez!”. Agora imagine um rapaz ou uma moça que coloca o código de sua personalidade obtida no Myers-Briggs em seu perfil de aplicativo de relacionamento ou na página de sua rede social. Será que isso diz algo relevante sobre como é se relacionar com essa pessoa? À sua moda, cada um desses métodos mensura alguma coisa que pode ser o suficiente para o cliente mesmo contendo falhas técnicas, lógicas e vieses de interpretação. Em todos os casos eles costumam falhar na predição de como as pessoas se comportarão, pela fragilidade lógica sobre a qual esses instrumentos ou conhecimentos mais tradicionais se sustentam. Por curiosidade ou entretenimento podem não fazer muito mal, mas definitivamente são recursos inseguros para tomada de decisões importantes sobre a vida e o prejuízo pode ser grande. No mundo real as bolas de cristal não conseguem prever um futuro que ainda nem existe.

Há um problema de definição típico do paradoxo de “quem veio antes: o ovo ou a galinha?”. Quando definimos os traços de personalidade de uma pessoa, estamos descrevendo comportamentos típicos ou desempenhos que um indivíduo costuma exibir em algumas situações. Uma pessoa que faz tudo com extrema competência e atenção a detalhes pode ser chamada de “perfeccionista”. Outra pessoa que pratica comportamentos de cuidados estéticos em alta frequência e detalhamento, chamamos de “vaidosa”. Alguém que se comunica de forma violenta e reativa em suas relações pessoais chamamos “agressivo”. Colocamos rótulos sobre os outros, mas também assumimos rótulos a partir do que os outros dizem sobre nós, assim como o que passamos a pensar de nós mesmos em consequência disso. Aí pergunto: a pessoa é agressiva porque se comunica de forma violenta ou se expressa de forma violenta porque é agressiva? O que vem antes: o comportamento ou a definição que colocamos sobre a pessoa? Uma fragilidade de nos contentarmos com definições simplificadas sobre uma pessoa é que deixamos de olhar para condições muito importantes, dependentes do momento e da situação, que explicam os comportamentos observados. As pessoas se comportam sempre de acordo com o contexto físico, social e psicológico quando tomam uma ação. Esse contexto é tão complexo e dinâmico, em contínua modificação com a passagem do tempo, que torna a tarefa de análise do comportamento um trabalho muito difícil quando se deseja chegar a respostas precisas. É tentador demais recorrer a explicações simplistas e definições prontas para dar sentido ao que estamos vivendo, sentindo e pensando. Só que isso nos leva ao erro de não enxergar a realidade tal como é e, em decorrência dessa visão distorcida, as chances de sucesso em tentar agir de formas mais adequadas no mundo real fica muito comprometida. A ciência da psicologia nos ensina que observar e explicar comportamentos não são coisas tão simples e intuitivas como aprendemos a fazer no senso comum do nosso dia a dia.

Infelizmente, o comportamento é complexo.” – Skinner, 1953. (Não sou eu quem está dizendo, viu? ;-)

Humanos aprendem a falar lá pelos 12 meses de vida e depois disso parecem ficar “viciados” em descrever o mundo. Seja num laboratório experimental de psicologia ou na vida cotidiana, é esperado que pessoas tentem identificar e descrever para si mesmas e para os outros o que pensam sobre o funcionamento dos seus comportamentos, dos comportamentos de outras pessoas e de como funcionam os eventos do mundo, em todas as situações possíveis. E não, o seu cachorro ou o seu gato não detém a capacidade linguística para pensar esse tipo de abstração. Ironicamente nós é quem pensamos como o seu bichinho de estimação deve estar pensando (a isso se chama antropomorfismo). Em outras palavras, o comportamento dos animais é modelado de acordo com os ambientes e com as consequências diretas do que eles experimentam vivendo no momento presente. No caso humano isso também acontece, mas o que pensamos e falamos a respeito do mundo tem uma influência significativa em nossos comportamentos. Tecnicamente essas descrições são regras que criamos para explicar a realidade que vivemos. Boas regras são aquelas que traduzem bem o que acontece na realidade e nos ajudam a aprender como viver melhor com base em nossas experiências e no que é ensinado para nós. Só que há outro efeito que regras podem gerar quando nós as seguimos como sendo uma previsão da realidade futura. Isso é tão relevante que pode chegar ao ponto da pessoa continuar seguindo a mesma regra indefinidamente, mesmo quando seu comportamento se torna inadequado porque ele fica insensível às mudanças da realidade e a tudo o que a regra não diz para fazer. Um exemplo inusitado, mas didático: se a pessoa tiver como regra que "sempre que usar um guarda-chuvas aberto sobre a cabeça não ficará molhado", ela pode agir corretamente quando estiver chovendo. Até aqui está tudo bem. Apegando-se demasiadamente a essa regra, ela continuará com o guarda-chuvas aberto sobre sua cabeça mesmo depois de parar de chover ou de entrar dentro de casa. A regra não perdeu a coerência, mas a realidade não exige mais o guarda-chuva: ela não vai se molhar dentro de casa segurando o guarda-chuva aberto sobre si, mas seguir essa regra pode ser um grande incômodo quando for tomar banho ou se sentar à mesa para fazer uma refeição. Muitos comportamentos de Transtorno Obsessivo Compulsivo possuem características de regras descoladas da realidade presente como as desse exemplo. Resumindo: regras podem descrever precisamente ou imprecisamente os nossos comportamentos e o mundo em que vivemos; regras também podem controlar nosso comportamento dependendo da forma com a qual as seguimos, podendo ser algo sadio e eficiente, mas não necessariamente. Quando fazemos o esforço de definir quem somos, estamos criando (auto)regras que descrevem nossos comportamentos em relação ao mundo.

Afinal: quem se define, se limita além dos nossos limites físicos e sociais pré-existentes?

Por um lado, sim. Podemos nos definir bem ou mal dependendo do quanto já sabemos fazer isso. Se cairmos na tentação de colar na testa os rótulos que nos são colocados ou que nos impomos, principalmente daqueles de origens imprecisas/pseudocientíficas/esotéricas, já começamos a olhar para as variáveis equivocadas e a ignorar aquilo que faz uma diferença real em nossas vidas, que de um momento para outro pode ser diferente. Ainda que se faça um trabalho tecnicamente cuidadoso e a pessoa consiga se definir muito bem, sabendo contar exatamente como e porque se comporta de determinadas maneiras, continua havendo o risco de cair no mesmo erro ao adotar essas regras como uma realidade absoluta e permanente. “Eu sempre fui assim mesmo e não mudo.”, é uma frase clássica que só muda de R.G., CPF e endereço de quem está falando. A descrição vira um dogma ou uma lei a ser seguida, fechando-se à possibilidade de mudanças voluntárias e conscientes sobre o destino de sua vida. Limita-se ao que já sabe fazer e ao mesmo de sempre. Extingue-se a possibilidade de variar, de aprender algo novo, de experimentar caminhos promissores somente porque as regras antigas e fechadas em si limitam o que se deve ou não fazer, mesmo quando a realidade mudar e sinalizar que existem oportunidades novas diante dos seus olhos.

Por outro lado, não. Quando olhamos para nossos comportamentos e os descrevemos de maneira coerente com a realidade que experimentamos, mas sem se preocupar com rotulações, estamos tateando experiências que se tornam conscientes e aumentam nosso autoconhecimento. Com maior autoconhecimento, maiores as chances de escolher bem o que gostaríamos de fazer com nossas vidas, prevendo os caminhos mais eficazes para construir uma vida cheia de valor e menos sofrimento evitável. Não se definir, nesse sentido, é equivalente a permanecer ignorante a respeito das influências que já estão lá controlando os seus comportamentos, sentimentos e escolhas, deixando a vida o levar para um lugar que talvez nem quisesse ir. Autoconhecimento é a habilidade de conseguir se observar, entender como costuma sentir e agir em determinadas situações, quais são as consequências prováveis que você obterá dependendo da escolha, e optar conscientemente por um caminho que faça sentido, colhendo as consequências que virão em seguida. Esse é um treino que pode começar a qualquer momento, seguir qualquer ritmo e ser muito refinado durante uma vida inteira.

Para saber um pouco mais sobre o assunto:

Castro, M. E. (2000). O Livro dos Signos. Campus.

Goodwin, C. J. (2005). História da Psicologia Moderna. (Trad. M. Rosas). Cultrix.

Harris, M. A., Brett, C. E., Johnson, W., & Deary, I. J. (2016). Personality stability from age 14 to age 77 years. Psychology and aging, 31(8), 862–874. https://doi.org/10.1037/pag0000133

Matos, M. A. (2001). Comportamento governado por regras. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 3(2), 51-66. https://doi.org/10.31505/rbtcc.v3i2.135

Morgeson F. P., Campion, M. A., Dipboye, R. L., Hollenbeck, J. R., Murphy, K, Schmitt, N. (2007). Are we getting fooled again? Coming to terms with limitations in the use of personality tests for personnel selection, Personnel Psychology, 60(4), 1029-1049. https://doi.org/10.1111/j.1744-6570.2007.00100.x

Skinner, B. F. (1953/2014). Science and Human Behavior. B. F. Skinner Foundation.

Skinner, B. F. (1957/2014). Verbal Behavior. B. F. Skinner Foundation.

Thompson, B., & Borrello, G. M. (1986). Construct Validity of the Myers-Briggs Type Indicator. Educational and Psychological Measurement, 46(3), 745–752. https://doi.org/10.1177/0013164486463032

Zettle, Robert & Hayes, Steven. (1982). Rule-Governed Behavior: A Potential Theoretical Framework for Cognitive–Behavioral Therapy. https://doi.org/10.1016/B978-0-12-010601-1.50008-5

Como referenciar esse artigo em normas ABNT:

PUPPI, Rodrigo Henrique. Quem se define... se limita?. Disponível em: <https://rodrigopuppi.com.br/post/quem-se-define-se-limita>. Acesso em: 00 de mês de 0000.

Como referenciar esse artigo em normas APA:

Puppi, R. H. (2021, 8 de janeiro). Quem se define... se limita?. [artigo em blog]. Recuperado de https://rodrigopuppi.com.br/post/quem-se-define-se-limita

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